quarta-feira, 12 de junho de 2013

Reflexões sobre o púlpito brasileiro.

Reflexões sobre o púlpito brasileiro

28/05/2013 08:59:01

Reflexões sobre o púlpito brasileiro Este autor ensina Homilética há alguns anos no Instituto Bíblico de Bauru, na Faculdade Teológica Batista de São Paulo, na de Brasília, onde ainda lecionou Pregação Expositiva e Pregação Biográfica, e agora, na Faculdade Batista de Teologia do Amazonas.1 Isto não o torna uma autoridade no assunto, mas lhe permite ter uma visão razoável do que se passa em nossos púlpitos.


Uma das tarefas pedidas aos seus alunos tem sido a de anotarem os esboços dos sermões que ouvem em suas igrejas. Isto é muito revelador. Boa parte dos alunos não consegue cumprir a tarefa por um motivo muito simples: o sermão não é compreensível. Não conseguem ver suas divisões. Isto seria remediável. A queixa maior é de absoluta falta de logicidade na argumentação. O sermão não é linear, mas circular, com argumentos se repetindo, sem se encaixarem, sem um nexo.

Preservando nomes e lugares expenderemos algumas considerações sobre o púlpito brasileiro, à luz desta experiência vivida com os alunos. Nada foi inventado e as opiniões são com base no que foi ouvido. A elas acrescemos nossas opiniões.

Uma questão que salta aos olhos é a consciência messiânica de muitos pregadores. É evidente que se espera de quem prega uma convicção muito profunda do que está a dizer. Se um homem não está possuído por uma santa paixão pelo evangelho, sua pregação será oca. Mas parece haver uma megalomania acentuada em alguns púlpitos. Desde a frase dita por um pregador (ouvida e anotada por um aluno): “Quem estende a mão contra mim, morre!” até o elogio em boca própria, muito comum. Outro pregador tornou-se célebre pelo repetido uso da expressão: “Um homem culto tem de falar três idiomas. Eu falo quatro”. Isso se tornou risível.

Esta autoimagem muito elevada já começa com o estudante de homilética. Muitos alunos recusam a disciplina e são imunes ao seu aprendizado porque já sabem pregar, porque acreditam que têm uma linha direta com Deus e que fazer reparos ao seu sermão é duvidar de sua integridade espiritual. A ideia é que o sermão vem de Deus e não dos homens. É incrível como esta concepção rege muitos pregadores e bloqueia os alunos. Combatemos este conceito observando que, se o sermão fosse dado por Deus, todos seriam iguais ou bastante semelhantes. Os pregadores não evidenciaram tantas diferenças entre si. Basta olhar em redor e verificar que há grandes diferenças em termos de conteúdo e de espiritualidade entre os pregadores para se saber, como bem diz Pedro Bloch, que “o homem é a fala”.

Al Martin nos diz que “o solo onde medra a pregação poderosa é a própria vida do pregador”.2 Estabelece ele um vínculo muito estreito entre pregação e pregador. O sermão não é um pacote espiritual que Deus dá ao pregador, mas é uma parte do pregador. No sermão descobrimos quem é o pregador: sua piedade, sua cultura, sua cosmovisão. Mas essa “messianidade de púlpito” mostra haver em muitos uma atitude de colocar-se acima da crítica e da necessidade de aperfeiçoar-se, como se tudo já estivesse completado. O narcisismo parece muito acentuado entre os pregadores.

Observamos também uma espantosa irrelevância, com a abordagem de temas que não interessam ao povo. Um dos alunos registrou que seu pastor utilizou três domingos pela manhã para dar relatórios da assembleia anual de sua denominação, incluindo balancetes financeiros. O malbaratamento do tempo e das oportunidades é surpreendente. Nota-se aqui um contraste: embora os pregadores tenham uma autoimagem elevada, não parecem ter um conceito elevado da pregação em si. Aquelas pessoas que são o auditório estão colocando, cada uma, meia hora de suas vidas nas mãos do pregador. Este tempo pode ser fundamental para o destino do ouvinte. As queixas mais comuns têm sido a de falta de conteúdo na pregação. O que se diz é irrelevante. Um sermão anotado foi sobre o parto. Com base em Gênesis 3.16. (“com dor darás à luz filhos”) o pregador se posicionou contra o parto sem dor. Outro pregou contra a prática de esportes, baseando-se em 1Timóteo 4.8: “o exercício corporal para pouco aproveita” (uma afirmação, por si só, bastante discutível e não sustentável hoje). De 2Samuel 11.2: “E do terraço viu uma mulher que estava se lavando” saiu um sermão contra a televisão, advertindo que Davi viu o que não devia ver e que na televisão vemos o que não devemos. A conclusão foi esta: “a televisão é uma agência de perdição”. Isto aconteceu em grandes centros urbanos do Brasil! O que estas exegeses revelam? Que benefícios trouxeram para a comunidade? O púlpito é para questões como estas? Este uso da Bíblia é correto? É isso que a Bíblia está ensinando?

A emissão de conceitos puramente pessoais em nome de Deus tem sido muito notado. Principalmente em épocas de eleições, as exegeses pró e contra posições políticas avultam. O uso da Bíblia é feito de maneira pouco convencional, sendo nada adequado para justificar a postura da pessoa. É oportuno lembrar uma citação do Prof. James Stewart: “A pregação não existe para a propagação de ideias, opiniões e ideais, mas para a proclamação dos poderosos atos de Deus”.3

Num agradável livrinho, Oswaldo Ramos4 nos traz ensinamentos muito práticos sobre pregação, acompanhados de curiosos desenhos. Num deles há duas senhoras conversando. Uma delas diz à outra: “Nosso pastor é formidável. Consegue pregar um sermão em qualquer versículo!”. Com a mão na boca, rindo, a outra diz; “O nosso é mais formidável ainda. Prega o mesmo sermão usando qualquer versículo!”. O uso de formidável foi muito bem escolhido. O sentido original da palavra é “terrível”. É realmente terrível uma situação dessas.

A ausência de conteúdo bíblico, em muitos lugares, é suprida pelo grito. “Isaltino, por que os pregadores brasileiros gritam?”, perguntou-me, surpreendido, o colega argentino Daniel Carro, num congresso de que participávamos. “Acho que é para mostrar que têm poder”, respondi. “Poder de quê? De arrebentar os ouvidos?”, devolveu-me o colega. Impressiona o nível sonoro dos sermões. Até mesmo quando transmitidos pelo rádio. Parece a alguns que, se não falarem em nível elevadíssimo, não serão acatados. Num excelente artigo, “Não Consigo Falar Mais Baixo”,5 o Dr. Noélio Duarte, especialista em problemas da fala, analisa as razões pelas quais as pessoas falam alto: insegurança, autoritarismo, problema de audição, baixa educação etc. Pode haver outras razões mais, até sadias. Mas uma coisa é certa: um pregador aos gritos incomoda muito. E parece ser comum em nosso meio.

Um pouco à parte das anotações dos alunos, impressiona a pândega em muitos sermões. Boa parte dos pregadores tem o hábito de começar com uma piada “para quebrar o gelo”. Voltando a Al Martin:

Ninguém pode ser, ao mesmo tempo, um palhaço e um profeta... Isso não quer dizer que não devamos ser autenticamente humanos, e que a habilidade natural de rir envolva qualquer elemento de pecaminosidade, ou que fosse pecaminosa a alegria natural que se deriva de um riso que procede do fundo do coração. Entretanto, o esforço desnatural de certos pregadores para serem ‘contadores de piada’, entre a nossa gente, constitui uma tendência que precisa acabar. 6
Temos observado, na análise dos assuntos abordados pelos sermões, que a maior preocupação é operacional e apologética: o modo como a coisa funciona e um ataque-defesa contra outros grupos. Boa parte dos sermões têm se ocupado em mostrar como o crente pode funcionalizar a vida cristã. Ocupam-se da prática cristã — oração, testemunho, comportamento no mundo etc. Houve um ano em que 40 alunos não captaram, durante três meses, um só sermão ético. Quando a abordagem é ética, é em termos de microética (bebida, fumo, mau testemunho etc.). A macroética (assuntos como cidadania, responsabilidades civis etc.) é menos abordada.

Parece que uma grande preocupação do púlpito é com a orientação em questões menores, com o cotidiano, do que com grandes temas. Parece refletir uma situação pastoral: são estas questões que mais frequentam as entrevistas em gabinetes pastorais. Os pregadores reagem às questões mais comuns.

Surpreende-nos a preguiça. Saindo da área das observações anotadas, é impressionante que livros com esboços de sermões (geralmente defeituosos, do ponto de vista homilético, com argumentação confusa e dispersa) sejam bem vendidos. Nossa luta é para que tais publicações não sejam compradas. Mas até aqui se nota o narcisismo. Uma destas obras, com esboços pouco compreensíveis, trazia o pomposo título de Sermões de Poder. Realmente espantoso: esboços poderosos. A falta de familiaridade com as regras homiléticas (ferramentas para ajudar o pregador e nunca substitutas da espiritualidade) e a falta de disposição para o trabalho — a leitura bíblica repetida, a exegese, a aplicabilidade das informações bíblicas, a luta para ordenar as ideias — levam à procura destes livros, que um pregador sério e esforçado para dar o melhor de si nunca deveria utilizar. Da mesma forma os livros de ilustrações enlatadas! Como se ouvem ilustrações absurdas, falsas e descontextualizadas, como de rei e rainha, ou do que aconteceu em outros países. A melhor fonte de ilustrações são os olhos atentos ao que se passa ao redor, contextualizando o ensino bíblico ao cotidiano e analisando este à luz da Bíblia. Isto enriquece significativamente um sermão: o mundo de ontem (a Bíblia) e o mundo de hoje (o que o pregador viu) se ajuntam.

Sem colocar-nos acima de outros e sem denegrir colegas que têm realizado grandes ministérios, uma análise do material que temos compulsado nos permite uma diagnose um tanto genérica, mas não inventada do púlpito brasileiro. Uma vitrine muito grande para exibição, escassa exegese bíblica, uso fragmentário da Escritura6 e despreocupação com a técnica. (Um aluno queixou-se de um pregador que há anos tem um problema sério de dicção que leva o auditório a perder mais da metade de suas palavras.) A preocupação maior do púlpito, enquanto voltado para os crentes, é mostrar a funcionalidade da vida cristã. Um problema grave é o desconhecimento de regras da língua portuguesa. Erros de concordância, de sintaxe, incapacidade de articular as frases sem maneirismos (é, né, tá, aí, ahn, intão) mostram um desinteresse pela comunicação eficiente. O negócio é dar o recado. Mas esta é a questão: o recado foi dado de forma eficiente? Basta desincumbir-se da missão ou é preciso fazê-lo bem? Uma boa palavra de Spurgeon, “o príncipe dos pregadores”, elucida a questão:

Vocês nunca ouviram falar por que Charles Dickens jamais se tornaria espírita? Numa sessão ele pediu para ver o espírito de Lindley Murray, o famoso gramático. Compareceu o pretenso espírito de Lindley Murray, e Dickens lhe perguntou: ‘Você é Lindley Murray?’ A resposta veio prontamente: ‘Sô ele mermo’. Não se poderia esperar a conversão de Dickens ao espiritismo depois de uma resposta que feria tanto a gramática. Podem rir, mas não deixem de fixar a moral da história. É fácil ver que, com erros de concordância, de regência verbal etc., poderão afastar a mente do ouvinte daquilo que tentam apresentar-lhe, impedindo assim que a verdade alcance seu coração e a sua consciência.8
Se a análise, mesmo sucinta, parece depreciativa, registramos um ponto altamente positivo: a sinceridade espiritual. São pessoas que parecem querer fazer o melhor. Não o fazem, muitas vezes, por impossibilidade ou por não terem sido despertadas. Mas assim mesmo, fica-nos a impressão de que o púlpito brasileiro é débil. Em forma e conteúdo. Pode ser melhorado. O meu, inclusive.

Sobre cinco pontos indispensáveis ao sucesso da comunicação verbal alistados por Irving Lee9 apresentamos acréscimos que devem ser considerados pelo pregador. Com isto, declaramos que a homilética precisa receber mais enfoque pelo ângulo da comunicação. Eis os pontos:

1. Domine seu assunto. Saiba exatamente o que deve dizer. Assim você não se perderá e evitará digressões ociosas e desnecessárias.
2. Aprenda a reconhecer os pontos fracos, os defeitos e as deficiências da comunicação dos outros. Ou seja, desenvolva o senso crítico — analise o que está errado.
3. Faça exatamente a mesma coisa com a sua comunicação. Você não é melhor que eles e talvez cometa os mesmos equívocos. Mas se viu como são prejudiciais, poderá eliminá-los na sua prática.
4. Desenvolva habilidades no sentido de aperfeiçoar a sua capacidade de comunicação. Seja crítico consigo mesmo, grave seus sermões e os analise, peça a uma pessoa de confiança que aponte falhas etc.
5. Procure aperfeiçoar sua capacidade de comunicação. Corrija seus erros, estude seu idioma, elimine os maneirismos verbais e, se for o caso, busque ajuda profissional.

A insatisfação consigo mesmo e a busca de uma melhora constante são compatíveis com a dignidade da pregação. Um pregador sério nunca se presumirá completo, mas estará sempre crescendo. Ser um bom pregador é uma tarefa que leva a vida toda e mais seis meses.

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1Este texto foi publicado, originalmente em Vox Scripturae volume IV – número 1, Março de 1994, p. 3-8.
2Al Martin, O Que Há de Errado com a Pregação de Hoje? (São Paulo, Fiel) 7.
3Citado de John R. W. Stott, The Preacher’s Portrait: Some New Testament Word Studies (Grand Rapids: Eerdmans, 1961) 34.
4Oswaldo Ramos, Maneja Bem a Palavra da Verdade (sem dados) 26.
5Noélio Duarte, “Não Consigo Falar Mais Baixo”, O Jornal Batista (5 de dezembro de 1993).
6Martin, O Que Há de Errado com a Pregação de Hoje?, 23.
7Sobre esta forma de encarar a Bíblia, ver Martin-Achard, Como Ler o Antigo Testamento (São Paulo, ASTE, 1970).
8Charles H. Spurgeon, O Conquistador de Almas, trad. Odayr Olivetti (São Paulo: PES, 1978) 65.
9Em Penteado, A Técnica da Comunicação Humana (9ª ed., São Paulo: Pioneira, 1986) 16.

Fonte: http://www.teologiabrasileira.com.br/teologiadet.asp?codigo=329

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