A. UMA HISTÓRIA COMPLEXA COM LIÇÕES PARA O FUTURO.
A história do movimento missionário é complexa. Precisamos notar que a transmissão da fé cristã não se limita a algumas nações que enviam e a outras que recebem. Tampouco se limita a algumas igrejas que enviam e a outras que recebem. Tais distinções eram comuns, nos círculos acadêmicos da missiologia, até bem avançado o século XX, e perduram, todavia, na linguagem e pensamento de muitos cristãos, mas essa interpretação dos fatos neutraliza os nativos e os projeta como receptores passivos, mansos e transformados pelo trabalho dos missionários estrangeiros.
Pelo contrário, a história mostra que o movimento e a atividade missionária têm várias direções, várias nacionalidades, várias etnias, são interculturais e inter-religiosos. Certamente, muitas das histórias das missões escritas durante o século XIX e princípio do século XX dão a impressão de que a missão é tarefa realizada por missionários da Europa e da América do Norte. Contudo, como temos visto, a maior parte do trabalho missionário cristão tem sido realizada pelos nativos. Reforçamos, portanto, que o movimento missionário não é de mão única, mas parece ser uma rede com múltiplas intercessões e confluências que não permite atribuir um centro para expansão, tampouco um determinado princípio ou padrão de movimento linear, cumulativo e progressivo. De tudo isso, resulta um movimento livre, mas frágil, com êxitos e fracassos, com entusiasmo e frustrações, ambiguidades e incertezas. Começamos, então, a nomear algumas das lições que podemos aprender com a história do movimento missionário.
Primeiro, o movimento missionário cristão ensina-nos que o evangelho é transmitido de uma cultura a outra, no processo de evangelização e da missão. O evangelho não pode ser transmitido se não for considerada a cultura – a língua, a religião, os símbolos, os sistemas de ritos, as práticas éticas etc. – dos grupos receptores. Dependendo de quão distintas sejam as culturas, o nível de tradução pode ser simples ou complexo. Não obstante, esse princípio de tradução do evangelho está baseada na experiência cristã da encarnação, na qual Deus em Jesus se manifesta à realidade humana para que a humanidade o receba não como estranho, mas como um conhecido.
Segundo, no caso do trabalho missionário intercultural, a grande maioria dos missionários lutou para viver e conviver sob os termos da demanda das culturas nos países onde se fazia a missão. Nesta história, destacam-se duas tendências: uma é a de lamentar e questionar o trabalho missionário desarraigado, distante e até explorador; outra é a de celebrar a gestão missionária fixa em seu contexto e protetora da vida dos povos. As duas tendências parecem entrelaçadas e não se sucedem cronologicamente.
Terceiro, a tarefa missionária nutre-se de muitas motivações. Essas motivações são de natureza política e econômica ( como as missões no tempo do imperialismo europeu norte-americano), de natureza religiosa e cultural ( como as missões na época moderna), de sobrevivência ( como as missões na primeira etapa da época antiga). Por isso, é imprescindível que nos perguntemos sobre o porquê das missões.
Quarto, as missões geram profundos sentimentos religiosos que polarizam ou unem diferentes grupos envolvidos. Esta história ilustra casos nos quais as missões fundaram, motivaram e nutriram um espírito de unidade que resultou no que hoje se conhece como movimento ecumênico. Mesmo grupos missionários que não se aliaram a esse movimento viram que as missões nutriam um espírito de unidade e um propósito comum. Contudo, as missões também provocaram fortes divisões. Muitas dessas divisões criaram novas denominações, e, às vezes, tornou-se difícil a comunicação entre algumas dessas famílias divididas.
As missões não só geraram profundos sentimentos religiosos entre os grupos cristãos, mas também geraram profundos sentimentos nas pessoas de outras religiões. As missões cristãs criaram o que se chama de “Renascimento do hinduísmo” na Índia. Na África, o trabalho missionário revitalizou as culturas e a cosmovisão animista, criando um sincretismo peculiar entre o cristianismo e as culturas religiosas tradicionais.
A tarefa missionária, mesmo que em algumas ocasiões não tenha o propósito de criar uma igreja ou comunidade organizada – como nos casos da China Inland Mission e muitas das missões evangélicas conservadoras – normalmente cria a igreja; esta, por sua vez, é missionária. A história das missões ressalta essa relação simbiótica entre missão e igreja.
Finalmente, as missões contribuíram, de forma significativa, para a evolução da cristandade. A cristandade é a fusão do cristianismo com uma ordem política e territorial. As missões, reforçando a transmissão do evangelho sem a imediata supervisão ou imposição da ordem da cristandade, começa a fomentar e a nutrir um cristianismo, que flui e cresce por causa de sua contínua interação com culturas alheias à cristandade e sem suas restrições. Esse cristianismo fixo em diferenças culturais, não restrito pelo legado das estruturas da cristandade, cheio de vitalidade e difícil de controlar e prever é o resultado direto do trabalho missionário ao longo da história. Esse cristianismo, sem fronteiras territorial, fluido, diverso, profético, carismático, do terceiro mundo é o que se projeta como levedura do movimento missionário do século XXI.
Fonte: GONZÁLEZ, Justo L., história do movimento missionário – São Paulo:Hagnos,2008.
Nenhum comentário:
Postar um comentário