Pastores que abandonam o púlpito enfrentam o difícil caminho da auto-aceitação e do recomeço.
Desânimo, solidão, insegurança, medo e dúvida. Uma estranha combinação
de sensações passou a atormentar José Nilton Lima Fernandes, hoje com 41
anos, a certa altura da vida. Pastor evangélico, ele chegou ao púlpito
depois de uma longa vivência religiosa, que se confunde com a de sua
trajetória. Criado numa igreja pentecostal, Nilton exerceu a liderança
da mocidade já aos 16 anos, e logo sentiria o chamado – expressão que,
no jargão evangélico, designa aquele momento em que o indivíduo
percebe-se vocacionado por Deus para o ministério da Palavra. Mas foi
numa denominação do ramo protestante histórico, a Igreja Presbiteriana
Independente (IPI), na cidade de São Paulo, que ele se estabeleceu como
pastor. Graduado em Direito, Teologia e Filosofia, tinha tudo para ser
um excelente ministro do Evangelho, aliando a erudição ao conhecimento
das Sagradas Escrituras. Contudo, ele chegou diante de uma encruzilhada.
Passou a duvidar se valeria mesmo a pena ser um pastor evangélico.
Afinal, a vida não seria melhor sem o tal “chamado pastoral”?
As razões para sua inquietação eram enormes. Ordenado pastor desde
1995, foi justamente na igreja que experimentou seus piores dissabores.
Conheceu a intriga, lutou contra conchavos, desgastou-se para
desmantelar o que chama de “estrutura de corrupção” dentro de uma das
igrejas que pastoreou. Mas, no fim de tudo isso, percebeu que a luta
fora inglória. José Nilton se enfraqueceu emocionalmente e viu o
casamento ir por água abaixo. Mesmo vencendo o braço-de-ferro para
sanar a administração de sua igreja, perdeu o controle da vida. A mulher
não foi capaz de suportar o que o ministério pastoral fez com ele. “Eu
entrei num processo de morte. Adoeci e tive que procurar ajuda médica
para me restabelecer”, conta. Com o fim do casamento, perdeu também a
companhia permanente da filha pequena, uma das maiores dores de sua
vida.
Foi preciso parar. No fim de 2010, José Nilton protocolou uma carta à
direção de sua igreja requisitando a “disponibilidade ativa”, uma
licença concedida aos pastores da denominação. Passou todo o ano de 2011
longe das funções ministeriais. No período, foi exercer outras funções,
como advogado e professor de escola pública e de seminário. “Acho
possível servir a Jesus, independentemente de ser pastor ou não”,
raciocina, analisando a vida em perspectiva. “Não acredito mais que um
ministério pastoral só possa ser exercido dentro da igreja, que o
chamado se aplica apenas dentro do templo. Quebrei essa visão clerical”.
Reconstruindo-se das cicatrizes, Nilton casou-se novamente. E, este ano
retornou ao púlpito, assumindo o pastoreio de uma igreja na zona leste
de São Paulo. Todavia, não descarta outro freio de arrumação. “Acho
que a vida útil de um líder é de três anos”, raciocina. “É o período em
que ele mantém toda a força e disposição. Depois, é bom que esse
processo seja renovado”. É assim que ele pretende caminhar daqui para
frente: sem fazer do pastorado o centro ou a razão da sua vida.
Encontrar o equilíbrio no ministério não é tarefa fácil. Que o digam os
ex-pastores ou pastores afastados do púlpito que passam a exercer
outras atividades ou profissões depois de um período servindo à igreja.
Uma das maiores denominações pentecostais do país, a Igreja do Evangelho
Quadrangular (IEQ), com seus 30 mil pastores filiados – entre homens e
mulheres –, registra uma deserção de cerca de 70 pastores por mês desde o
ano passado. Os números estão nas circulares da própria igreja. Não é
gente que abandona a fé em Cristo, naturalmente; em sua maioria, os
religiosos que pedem licença ou desligamento das atividades pastorais
continuam vivendo sua vida cristã, como fez José Nilton no período em
que esteve afastado do púlpito. É que as pressões espirituais e as
demandas familiares e pessoais dos pastores, nem sempre supridas,
constituem uma carga difícil de suportar ao longo doa anos. Some-se a
isso os problemas enfrentados na própria igreja, as cobranças da
liderança, a necessidade de administrar a obra sob o ponto de vista
financeiro e – não raro – as disputas por poder e se terá uma ideia do
conjunto de fatores que podem levar mesmo aquele abençoado homem de Deus
a chutar tudo para o alto.
A própria IPI, onde José Nilton militou, embora muito menor que a
Quadrangular – conta com cerca de 500 igrejas no país e 690 pastores
registrados –, teria hoje algo em torno de 50 ministros licenciados,
número registrado em relatório de 2009. Pode parecer pouco, mas
representa quase dez por cento do corpo de pastores ativos. Caso se
projete esse percentual à dimensão da já gigantesca Igreja Evangélica
brasileira, com seus aproximadamente 40 milhões de fiéis, dá para
estimar que a defecção dos púlpitos é mesmo numerosa. De acordo com
números da Fundação Getúlio Vargas, o número de pastores evangélicos no
país é cinco vezes maior do que a de padres católicos, que em 2006 era
de 18,6 mil segundo o levantamento Centro de Estatísticas Religiosas e
Investigações Sociais. Porém, devido à informalidade da atividade
pastoral no país, é certo que os números sejam bem maiores.
FERIDOS QUE FEREM
O chamado pastoral sempre foi o mais valorizado no segmento evangélico.
Por essa razão, é de se estranhar quando alguém que se diz escolhido
por Deus para apascentar suas ovelhas resolva abandonar esse caminho.
Nos Estados Unidos, algumas pesquisas tentam explicar os principais
motivos que levam os pastores a deixar de lado a tarefa que um dia
abraçaram. Uma delas foi realizada pelo ministério LifeWay, que, por
telefone, contatou mil pastores que exerciam liderança em suas
comunidades eclesiásticas. E o resultado foi que, apesar de se sentirem
privilegiados pelo cargo que ocupavam (item expresso por 98% dos
entrevistados), mais da metade, ou 55%, afirmaram que se sentiam
solitários em seus ministérios e concordavam com a afirmação “acho que é
fácil ficar desanimado”. Curiosamente, foram os veteranos, com mais 65
anos, os menos desanimados. Já os dirigentes das megaigrejas foram os
que mais reclamaram de problemas. De acordo com o presidente da área de
pesquisas da Life Way, Ed Stetzer – que já pastoreou diversas igrejas –,
a principal razão para o desânimo pode vir de expectativas irreais.
“Líderes influenciados por uma mentalidade consumista cristã ferem todos
os envolvidos”, aponta. “Precisamos muito menos de clientes e muito
mais de cooperadores”, diz, em seu blog pessoal.
Outras pesquisas nos EUA vão além. O Instituto Francis Schaeffer, por
exemplo, revelou que, no último ano, cerca de 1,5 mil pastores têm
abandonado seus ministérios todos os meses por conta de desvios morais,
esgotamento espiritual ou algum tipo de desavença na igreja. Numa
pesquisa da entidade, 57% dos pastores ouvidos admitiram que deixariam
suas igrejas locais, mesmo se fosse para um trabalho secular, caso
tivessem oportunidade. E cerca de 70% afirmam sofrer depressão e admitem
só ler a Bíblia quando preparam suas pregações. Do lado de cá do
Equador, o nível de desistência também é elevado, ainda mais levando-se
em conta as grandes expectativas apresentadas no início da caminhada
pastoral pelos calouros dos seminários. “No começo do curso, percebemos
que uma boa parte dos alunos possui um positivo encantamento pelo
ministério. Mais adiante, já demonstram preocupação com alguns dilemas”,
observa o diretor da Faculdade Teológica Batista de São Paulo, o pastor
batista Lourenço Stélio Rega. Ele estima que 40% dos alunos que iniciam
a faculdade de teologia desistem no meio do caminho. Os que chegam à
ordenação, contudo, percebem que a luta será uma constante ao longo da
vida ministerial – como, aliás, a própria Bíblia antecipa.
E, se é bom que o ministro seja alguém equilibrado, que viva no
Espírito e não na carne, que governa bem a própria casa, seja marido de
uma só mulher (ou vice-versa, já que, nos tempos do apóstolo Paulo não
se praticava a ordenação feminina) e tantos outros requisitos, forçoso é
reconhecer que muita gente fica pelo caminho pelos próprios erros. “O
ministério é algo muito sério” lembra Gedimar de Araújo, pastor da
Igreja Evangélica Ágape em Santo Antonio (ES) e líder nacional do
Ministério de Apoio aos Pastores e Igrejas, o Mapi. “Se um médico, um
advogado ou um contador erram, esse erro tem apenas implicação terrena.
Mas, quando um ministro do Evangelho erra, isso pode ter implicações
eternas.”
Desde que foi criado, há 20 anos, em Belo Horizonte (MG), como um braço
do ministério Servindo Pastores e Líderes (Sepal), o Mapi já atendeu
milhares de pastores pelo país. Dessa experiência, Gedimar traça quatro
principais razões que podem ser cruciais para a desmotivação e o
abandono do ministério. “Ativismo exagerado, que não deixa tempo para a
família ou o descanso; vida moral vacilante, que abre espaço para a
tentação na área sexual; feridas emocionais e conflitos não resolvidos; e
desgaste com a liderança, enfrentando líderes autoritários e que não
cooperam”, enumera. Para ele, é preciso que tanto os membros das igrejas
quanto as lideranças denominacionais tenham um cuidado especial com os
pastores. “Muitos sofrem feridas, como também, muitas vezes, chegam para
o ministério já machucados. E, infelizmente, pastor ferido acaba
ferindo”.
Quanto à responsabilidade do próprio pastor com o zelo ministerial,
Gedimar é taxativo: “É melhor declinar do ministério do que fazê-lo de
qualquer jeito ou por simples necessidade”. A rede de apoio oferecida
pelo Mapi supre uma lacuna fundamental até mesmo entre os pastores – a
do pastoreio. “É preciso criar em torno do ministro algumas estruturas
protetoras. É muito bom que o líder conte com um grupo de outros
pastores onde possa se abrir e compartilhar suas lutas; um mentor que
possa ajudá-lo a crescer e acompanhamento para seu casamento e família
e, por fim, ter companheiros com quem possa desenvolver amizades e
relacionamentos saudáveis e sólidos”, enumera.
EXPECTATIVAS
Juracy Carlos Bahia, pastor e diretor-executivo da Ordem dos Pastores
Batistas do Brasil (OPBB), sediada no Rio de Janeiro, conhece bem o
dilema dos colegas que, a certa altura do ministério, sentem-se
questionados não só pelos outros, mas, sobretudo, por si mesmos. Ele
lida com isso na prática e sabe que o preço acaba sendo caro demais.
“Toda atividade que envolve vocação, como a do professor, a do médico ou
a do pastor, é vista com muita expectativa. Quando se abandona esse
caminho, é natural um sentimento de inadequação”. Para Bahia, o
desencantamento com o ministério pastoral é fruto também do que entende
como frustrações no contexto eclesiástico. Há pastores, por exemplo, que
julgam não ter todo seu potencial intelectual utilizado pela
comunidade. “Às vezes, o ministro acha que a igreja que pastoreia é
pequena demais para seus projetos pessoais”, opina. Isso, acredita
Bahia, estimula muitos a acumularem diversas funções, além das
pastorais. “Eu defendo que os pastores atuem integralmente em seus
ministérios. Porém, o que temos visto são pastores-advogados,
pastores-professores, enfim, pastores que exercem outras profissões
paralelas ao púlpito”, observa.
No entender do dirigente da OPBB, esse acúmulo de funções mina a
energia e o potencial do obreiro para o serviço de Deus. A associação
reúne aproximadamente dez mil pastores batistas e Bahia observa isso no
seio da própria entidade: “Creio que metade deles sofra com a fuga das
atividades pastorais para as seculares”. Contudo, ele acredita que
deixar o ministério não é algo necessariamente negativo. “A pessoa pode
ter se sentido vocacionada e, mais adiante na vida, por meio da
experiência, das orações e interação com outros pastores, é
perfeitamente possível chegar à conclusão que a interpretação que fez
sobre seu chamado não foi adequada e sim emotiva”.
Quando, já na meia idade, casado e com dois filhos, ingressou no
Seminário Presbiteriano do Norte (SPN), na capital pernambucana, Recife,
Francisco das Chagas dos Santos parecia um menino de tanto entusiasmo.
Nem mesmo as críticas de parentes para que buscasse uma colocação social
que lhe desse mais status e dinheiro o desmotivou. “A igreja, para mim,
é a melhor das oportunidades de buscar e conhecer meu Criador para que,
pela graça, eu continue com firmeza a abrir espaço em meu coração para
que ele cumpra sua vontade em mim, inclusive no ministério pastoral”,
anotou em sua redação para o ingresso no SPN, em 1998. Ele formou-se no
curso, foi ordenado pastor em 2003 e dirigiu igrejas nas cidades de
Garanhuns e Saloá.
Hoje, aos 54 anos, Francisco trabalha como servidor público no
Instituto Agronômico de Pernambuco. Ainda não curou todas as feridas e
ressentimentos desde que, em 2010, entregou seu pedido de desligamento
da denominação. Ele lamenta o tratamento recebido pelos seus superiores
enquanto foi pastor. “Minha opinião sobre igreja não mudou. Nunca
planejei um dia pedir licença ou despojamento do ministério. Mas entendo
que somos o Corpo de Cristo, e, se uma unha dói, todos nós estamos
doentes”, pondera. “Não é possível ser pastor sem pensar em restaurar
vidas – e existem muitas vidas precisando de conserto, inclusive entre
nós, pastores”.
A vida longe dos púlpitos ainda não foi totalmente sublimada e
Francisco sabe bem que será constantemente indagado sobre sua decisão de
deixar o ministério. “A impressão é que você deixou um desfalque, que
adulterou ou algo parecido”, observa. Ele não considera voltar a
pastorear pela denominação na qual se formou, porém não consegue deixar
de imaginar-se como pastor. “Uma vez pastor, pastor para sempre”,
recita, “muito embora as pessoas, em geral, acreditem que seja
necessário um púlpito.”
Por Marcelo Brasileiro
Fonte: http://cristianismohoje.com.br/materia.php?k=854&__akacao=839398&__akcnt=3088de9c&__akvkey=b44c&utm_source=akna&utm_medium=email&utm_campaign=CH+12+Maio