Não, não é por dever de ofício que defendo a importância
da teologia. Não se trata do fato de haver sido conquistada há muitos
anos pelo amor que me inspirava quando via no cerne do momento histórico
brasileiro – feito de cinzas e chumbo - minha Igreja de inspirada
profecia. Não, não é por vício intelectual de quem não se apercebe dos
problemas simples da humana sensibilidade.
Sucede que creio na importância do diálogo entre a fé e a razão. Acontece que não acredito em crença ou religião que, à força de afastar-se da reflexão, desvertebra-se e definha em magra moral e atrofiada doutrina. Veja o leitor, acredito na centelha que o Criador acende nas mentes humanas, as quais a partir daí são convidadas a decifrar os enigmas da natureza, produzir sínteses articuladas e, também e não menos, buscar respeitosa e reverentemente penetrar nos mistérios da Transcendência que se desvelam provocando razão e coração. E acredito que a experiência do mistério ao qual chamamos Deus pode e deve ser conhecido também com a razão.
Toda essa apologia da sacra ciência à qual me dedico por décadas, na docência e na pesquisa, surgem-me da continuada reflexão sobre os recentes dados do Censo de 2010 a respeito da religião no Brasil. Como tantos, encontro-me perplexa com a imensa diminuição dos fiéis das fileiras católicas e protestantes históricas. Mais ainda, quando o êxodo se dá em direção às comunidades evangélicas de corte pentecostal.
O perfil das mesmas é conhecido: muitos cantos, manifestações exteriores afetivas e catárticas, línguas que se desatam proferindo discursos incompreensíveis, liturgias ruidosas. Aparece pouco ou quase nada o silêncio, a reflexão, a interioridade e a atenção ao caminho que a Palavra e o Espírito realizam em cada um e na comunidade reunida.
As análises são taxativas. O povo brasileiro e sobretudo os jovens desejam experiências religiosas mais afetivas. Há toda uma reconstrução da identidade religiosa em marcha, feita de pluralidade, múltipla pertença e mobilidade. Parece que o discurso religioso unívoco e unilateral encontra sérias dificuldades em fazer-se ouvir em uma sociedade tão movediça como a brasileira.
Creio, no entanto, que estamos nos esquecendo de algo importante. Nos anos 1980, quando a produção teológica era pujante, vivendo ainda das vigorosas relíquias do Concílio Vaticano II, o cristianismo histórico encontrava cidadania mais forte em meio à secularidade e à pluralidade que já fazia sentir sua presença. A perda de espaço e de fiéis das igrejas históricas coincidiu com uma perda da existência de um discurso teológico articulado, que enfrente as questões da sociedade e da Igreja, pensando-as à luz da fé e articulando-as em coerente discurso.
Por isso é que, desde dentro de uma pertença católica herdada ao nascer e abraçada continuamente, sempre de novo, ao longo desta já longa vida; humildemente perplexa como tantos ao procurar ler e entender os dados do Censo, eu diria que há um passo a mais que talvez seja importante para entender a queda dos números. O cristianismo histórico tem que recuperar sua vocação pensante! Há que pensar a própria experiência e a própria fé. Pensá-la em diálogo e com o auxílio das diferentes formas da cultura, da arte e de tudo que o gênio humano produziu em sua historia. Pensá-la diante dos grandes desafios globais que hoje a sociedade lança aos que lutam por um novo mundo possível. Pensá-la diante da fome e sede de nossos contemporâneos que desejam e esperam sínteses plausíveis e razoáveis da enorme fragmentação em que nos encontramos mergulhados.
Os mais de 2000 anos de cristianismo histórico tiveram isso muito claro por longo tempo. Assim, formaram e forjaram uma matriz cultural que configurou esta metade do mundo chamada Ocidente. Houve pecados pelo caminho, como o de não valorizar ou dialogar com as culturas autóctones, não incluir ou integrar outras culturas mais longínquas e outras religiões.
Porém, isso prova mais fortemente ainda que religião sem cultura simplesmente não existe. A fé – especialmente a fé cristã – sempre encontrou seu meio de expressão e crescimento nas culturas onde entrou. E quando digo cultura, digo também aquele movimento que faz o ser humano refletir sobre suas experiências, esforçar-se para compreendê-las, buscar e encontrar um quadro de referência onde situá-las e apropriar-se delas. Só assim poderá transmiti-las a outros e outras de forma atraente e plausível.
Dá-me a impressão de que entre o que faz as novas gerações afastarem-se do catolicismo está, além do desejo às vezes frustrado por uma experiência espiritual profunda, a assustadora lacuna de uma reflexão consistente e vigorosa sobre os conteúdos desta experiência. A inteligência da fé, também chamada Teologia, encontra-se aí poderosamente convocada a elaborar um discurso que tenha algo a dizer nesta situação. Oxalá esteja à altura deste chamado!
* Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, é autora de 'Simone Weil - A força e a fraqueza do amor' (Ed. Rocco). -mhpal@terra.com.br
Sucede que creio na importância do diálogo entre a fé e a razão. Acontece que não acredito em crença ou religião que, à força de afastar-se da reflexão, desvertebra-se e definha em magra moral e atrofiada doutrina. Veja o leitor, acredito na centelha que o Criador acende nas mentes humanas, as quais a partir daí são convidadas a decifrar os enigmas da natureza, produzir sínteses articuladas e, também e não menos, buscar respeitosa e reverentemente penetrar nos mistérios da Transcendência que se desvelam provocando razão e coração. E acredito que a experiência do mistério ao qual chamamos Deus pode e deve ser conhecido também com a razão.
Toda essa apologia da sacra ciência à qual me dedico por décadas, na docência e na pesquisa, surgem-me da continuada reflexão sobre os recentes dados do Censo de 2010 a respeito da religião no Brasil. Como tantos, encontro-me perplexa com a imensa diminuição dos fiéis das fileiras católicas e protestantes históricas. Mais ainda, quando o êxodo se dá em direção às comunidades evangélicas de corte pentecostal.
O perfil das mesmas é conhecido: muitos cantos, manifestações exteriores afetivas e catárticas, línguas que se desatam proferindo discursos incompreensíveis, liturgias ruidosas. Aparece pouco ou quase nada o silêncio, a reflexão, a interioridade e a atenção ao caminho que a Palavra e o Espírito realizam em cada um e na comunidade reunida.
As análises são taxativas. O povo brasileiro e sobretudo os jovens desejam experiências religiosas mais afetivas. Há toda uma reconstrução da identidade religiosa em marcha, feita de pluralidade, múltipla pertença e mobilidade. Parece que o discurso religioso unívoco e unilateral encontra sérias dificuldades em fazer-se ouvir em uma sociedade tão movediça como a brasileira.
Creio, no entanto, que estamos nos esquecendo de algo importante. Nos anos 1980, quando a produção teológica era pujante, vivendo ainda das vigorosas relíquias do Concílio Vaticano II, o cristianismo histórico encontrava cidadania mais forte em meio à secularidade e à pluralidade que já fazia sentir sua presença. A perda de espaço e de fiéis das igrejas históricas coincidiu com uma perda da existência de um discurso teológico articulado, que enfrente as questões da sociedade e da Igreja, pensando-as à luz da fé e articulando-as em coerente discurso.
Por isso é que, desde dentro de uma pertença católica herdada ao nascer e abraçada continuamente, sempre de novo, ao longo desta já longa vida; humildemente perplexa como tantos ao procurar ler e entender os dados do Censo, eu diria que há um passo a mais que talvez seja importante para entender a queda dos números. O cristianismo histórico tem que recuperar sua vocação pensante! Há que pensar a própria experiência e a própria fé. Pensá-la em diálogo e com o auxílio das diferentes formas da cultura, da arte e de tudo que o gênio humano produziu em sua historia. Pensá-la diante dos grandes desafios globais que hoje a sociedade lança aos que lutam por um novo mundo possível. Pensá-la diante da fome e sede de nossos contemporâneos que desejam e esperam sínteses plausíveis e razoáveis da enorme fragmentação em que nos encontramos mergulhados.
Os mais de 2000 anos de cristianismo histórico tiveram isso muito claro por longo tempo. Assim, formaram e forjaram uma matriz cultural que configurou esta metade do mundo chamada Ocidente. Houve pecados pelo caminho, como o de não valorizar ou dialogar com as culturas autóctones, não incluir ou integrar outras culturas mais longínquas e outras religiões.
Porém, isso prova mais fortemente ainda que religião sem cultura simplesmente não existe. A fé – especialmente a fé cristã – sempre encontrou seu meio de expressão e crescimento nas culturas onde entrou. E quando digo cultura, digo também aquele movimento que faz o ser humano refletir sobre suas experiências, esforçar-se para compreendê-las, buscar e encontrar um quadro de referência onde situá-las e apropriar-se delas. Só assim poderá transmiti-las a outros e outras de forma atraente e plausível.
Dá-me a impressão de que entre o que faz as novas gerações afastarem-se do catolicismo está, além do desejo às vezes frustrado por uma experiência espiritual profunda, a assustadora lacuna de uma reflexão consistente e vigorosa sobre os conteúdos desta experiência. A inteligência da fé, também chamada Teologia, encontra-se aí poderosamente convocada a elaborar um discurso que tenha algo a dizer nesta situação. Oxalá esteja à altura deste chamado!
* Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, é autora de 'Simone Weil - A força e a fraqueza do amor' (Ed. Rocco). -mhpal@terra.com.br
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