Bíblia e Exegese
A Escritura e a tradição hermenêutica
28/05/2013 13:25:09
Uma coisa é falar em tradição oral como fonte de revelação ao lado da
Escritura, outra, bem diferente, é falar da tradição como consenso da
igreja antiga, ou seja, como compreensão comum dos que mantiveram a fé
bíblica ao longo dos séculos. Estamos nos referindo ao entendimento que
pode ser rastreado na história dos cristãos que criam na autoridade
suprema e exclusiva das Sagradas Escrituras. Tal entendimento deveria
representar no mínimo o que o sinal amarelo do semáforo significa para
um motorista.
O conceito de tradição como uma fonte autorizada de conhecimento
teológico, ao lado e além das Escrituras, é um resíduo da heresia
gnóstica no catolicismo romano. Foram os gnósticos os primeiros a
sustentar o acesso a um pretenso conhecimento secreto e especial que não
teria sido documentado. Essa visão criava uma hierarquia espiritual na
igreja, onde os “perfeitos” tinham conhecimentos privilegiados. De
semelhante modo, no catolicismo romano, a hierarquia eclesiástica se
apresenta como depositária de uma suposta mensagem apostólica não
escriturada.
Irineu (século II) respondeu aos gnósticos sustentando a autoridade e
suficiência da Escritura, mas salientou a existência de um modo legítimo
de interpretar os textos sagrados, uma forma reconhecida de ler a
Bíblia dentro da comunidade da fé. Isso é o que chamamos de “tradição
hermenêutica”. Ela não concorre com a autoridade da Bíblia, mas, antes,
concorre para a autoridade da Bíblia, pois evita a proliferação de um
relativismo hermenêutico despropositado. Temos aqui um critério de
validação do conhecimento bíblico ou, pelo menos, um parâmetro para
motivar o reexame de nossas primeiras conclusões.
O fato de não concordarmos com o catolicismo quando ele reivindica a
infalibilidade do papa e dos concílios não deveria ensejar uma rendição
ao subjetivismo interpretativo. Esse subjetivismo, que favorece ao
relativismo predominante em nosso tempo, não é uma libertação de toda
tradição, mas, antes, é a aceitação acrítica do pensamento moderno e
racionalista que sustenta a autonomia atemporal do homem.
Alister McGrath explica a posição adotada pelos reformadores:
A Reforma magisterial estava extremamente consciente da ameaça de individualismo e procurou evitar essa ameaça enfatizando a interpretação tradicional da igreja para as Escrituras sempre que essa interpretação era considerada correta. A crítica doutrinária foi dirigida contra áreas em que a prática ou teologia católica parecia extrapolar ou contradizer as Escrituras. Uma vez que a maioria dessas interpretações se desenvolveu na Idade Média, não é de surpreender que os reformadores se referissem ao período de 1200–1500 como uma ‘era de decadência’ ou um ‘período de corrupção’, que tinham a missão de reformar. Também não é surpreendente que vejamos os reformadores apelando para os patriarcas da igreja primitiva como intérpretes em geral confiáveis das Escrituras (MCGRATH, 2007, p. 202).
Não prestigiamos uma interpretação pessoal e isolada das
Escrituras, antes, nós queremos “compreender, COM TODOS OS SANTOS, qual
seja a largura, e o comprimento, e a altura, e a profundidade e conhecer
o amor de Cristo, que excede todo entendimento”, para que sejamos
“cheios de toda a plenitude de Deus” (Efésios 3.18,19) (ênfase do
autor).
Não podemos negar dois milênios de história cristã. Se a igreja, por
exemplo, estivesse errada em assuntos como a Trindade, as duas naturezas
de Cristo e a inspiração da Bíblia, então, não teria existido
continuidade legítima do cristianismo em praticamente dois mil anos.
Obviamente, isso seria inaceitável, pois seria uma declaração de
fracasso do projeto divino.
Certas seitas e denominações que não encontram antecedentes históricos
respeitáveis para o seu ensino evidenciam com o fato a sua condição
herética. O termo heresia significa “partido”, em oposição ao todo,
enquanto “apostasia” significa “desvio”, indicando uma quebra de
continuidade. Não se pode dar um salto acrobático do último apóstolo
para os dias de hoje. Por esse motivo, são inaceitáveis certas novidades
como a ordenação recente de mulheres ao ministério ou a ideia
contemporânea de que homossexualismo não é pecado.
Jesus disse que o Espírito Santo guiaria os crentes a toda a verdade
(João 16.13). Imaginar que algo possa ser descoberto hoje sem qualquer
referência na história cristã anterior é negar a presença e obra do
Espírito na igreja.
A tradição hermenêutica e a confiabilidade dos manuscritos bíblicos
O iluminismo foi um movimento racionalista que marcou o início da
modernidade. Os iluministas julgavam como irracional qualquer
perspectiva contrária àquela que defendiam. A verdade, porém, é que os
iluministas reduziam a razão a uma única forma, à razão matemática,
abstrata e dedutiva. A razão, porém, possui várias manifestações, sendo
cada uma adequada a uma área do conhecimento ou a uma dimensão da
realidade.
Uma vez que Deus se revelou progressivamente no tempo, nós não podemos
desconsiderar a história ao interpretar a Bíblia. Antes, devemos levar
em conta não só a história que foi registrada na Bíblia, mas também a
história do registro bíblico.
Há pessoas que, influenciadas pelo iluminismo, reivindicam uma autonomia
em relação à história. Elas querem interpretar a Bíblia sem conferir o
resultado com o passado. Não percebem que não pode ser verdade o que não
encontra continuidade ou antecedente dentro do cristianismo.
Se não tivesse existido uma tradição de leitura sacra, nós não teríamos
sequer traduções confiáveis da Bíblia. As Escrituras hebraicas, por
exemplo, só usavam consoantes. As vogais, não sendo escritas, eram
conhecidas pela prática da leitura em sucessivas gerações. As disputas
existentes até hoje sobre a pronúncia do nome de Deus no Antigo
Testamento devem-se ao fato de os judeus não o mencionarem por excesso
de reverência. Isso ocasionou o esquecimento das vogais do tetragrama
divino.
Dentro do raciocínio aqui desenvolvido, nós cremos não só na inspiração
dos autógrafos (manuscritos originais) da Bíblia, mas cremos que os
manuscritos copiados existentes (apógrafos) também foram guardados
providencialmente por Deus de acordo com o sentido dos originais. Não
crer nisso é fazer Deus parecer contraditório, supondo que ele tenha
inspirado infalivelmente os autores da Escritura para depois não
preservar os textos pela sua providência. É limitar a ação miraculosa de
Deus ao passado.
Alguns historiadores, depois da descoberta recente de manuscritos
bíblicos julgados mais antigos, constataram pequenas variantes em
relação ao texto que vínhamos usando para as nossas traduções (chamado
“texto recebido”). A partir desse fato, eles puseram em dúvida a
autenticidade de todas as traduções clássicas. Tais historiadores não
perceberam que esses textos mais “antigos” não eram lá tão antigos. O
texto que usamos, exatamente por ter sido considerado fiel aos originais
pela igreja antiga, foi copiado e recopiado. A constante possibilidade
de ter um exemplar mais novo fez com que os irmãos se descuidassem de
guardar os exemplares mais antigos. Alguns textos que foram recentemente
encontrados em locais específicos representam cópias imperfeitas. Tais
cópias mereceram o cuidado de serem guardadas apenas porque, pelo fato
de não serem tidas por fiéis, não foram mais recopiadas ao longo do
tempo.
A Confissão de Fé De Westminster (I.8) conclui com razão:
O Velho Testamento em Hebraico (língua nativa do antigo povo de Deus) e o Novo Testamento em Grego (a língua mais geralmente conhecida entre as nações no tempo em que ele foi escrito), sendo inspirados imediatamente por Deus, e pelo SEU SINGULAR CUIDADO E PROVIDÊNCIA conservados puros em todos os séculos, são, por isso, autênticos, e assim em todas as controvérsias religiosas a Igreja deve apelar para eles como para um Supremo Tribunal.
Podemos ter certeza que a Palavra de Deus foi conservada pelo Deus fiel!
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Referências Bibliográficas:
MCGRATH, Alister E. Teologia Histórica. São Paulo: Cultura Cristã, 2007.
A CONFISSÃO DE FÉ DE WESTMINSTER. São Paulo: Cultura Cristã, 1994.
GLAUCO BARREIRA MAGALHÃES FILHO
Bacharel e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará; Doutor
em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará; Livre Docente em
Filosofia pela Universidade Estadual Vale do Acaraú; Doutor em
Ministério pela Faculdade de Teologia Metodista Livre; Pós-Graduado em
Teologia Histórica e Dogmática pela Faculdade Entre Rios do Piauí;
Professor de Hermenêutica da Universidade Federal do Ceará (Graduação,
Mestrado e Doutorado); Pesquisador do NERPO/UFC (Núcleo de Estudos de
Religião, Política e Cultura) – Grupo de Pesquisa cadastrado no CNPQ;
Diretor do Instituto Pietista de Cultura (IPC); Coordenador do Curso de
Direito da Fametro; Pastor da Igreja Batista Moriá em Fortaleza-Ce.
Autor dos seguintes livros: O imaginário em as crônicas de Nárnia (Mundo Cristão), Lições das crônicas de Nárnia (Abba Press), Teologia e imaginário (Editora Refexão), Teologia do fogo (Moriá ed.), Manifesto contra o mundanismo (Moriá ed.), Hermenêutica e unidade axiológica da Constituição (Del Rey), Hermenêutica jurídica clássica (Conceito Editorial), Teoria dos valores jurídicos (Mandamentos) e A essência do Direito (Rideel).
Blog: cristianismoeuniversidade.blogspot.com.br
E-mail: glaucobarreira@yahoo.com.br
Fonte: http://www.teologiabrasileira.com.br/teologiadet.asp?codigo=330
Denilson Andrade (2º ano)
ResponderExcluirUns dos maiores desafios da igreja pós-moderna está em conservar as tradições cristãs. Os escritos bíblicos, feitos sob a influência do Espirito da Verdade, passam uma única mensagem, que é descoberta a partir de uma hermenêutica correta. Sendo assim, é de suma importância que o interprete bíblico esteja apoiado na chamada "tradição hermenêutica" ao analisar o texto sagrado. Quando isso não ocorre, abre-se uma lacuna para interpretações heréticas e relativizadas. Logo, faz-se necessário que interpretamos os escritos bíblicos sob a direção do Espirito Santo e seguindo a linha da hermenêutica histórica cristã, tal qual afirmava Calvino acerca da interpretação bíblica: "orare et labutare".
Uma interpretação dos textos sagrados que negligencia ou esquece sua inspiração não leva em conta a sua importante e preciosa característica, ou seja, da sua proveniência de Deus". Por isso é preciso que este "tema da inspiração seja ligado também ao tema da verdade das Escrituras" de forma que não perca sua essência
ResponderExcluirALUNO : JOSUÉ LUCENA 2º ANO
A tradição foi fundamental para a solidificação e conhecimento do que temos hoje para a fundamentação da fé em Cristo, ela juntamente com a Bíblia descreve historicamente como foi o desenvolvimento do cristianismo. Sem ela não teríamos relatos de como confrontaram os primeiros cristãos pelos anos que sucederam através das histórias. Se não fosse por ela (tradição), não teríamos acesso à quantidade de informação que nós é fornecida tornando-se necessária na compilação dos relatos da história do cristianismo. Esta corrobora com o que temos de relatos bíblicos na atualidade, algo que não seria fácil na elaboração de uma compilação partindo de uma regressão da história.
ResponderExcluirO cristianismo sem dúvida segue uma linha crescente da história, fatos que foram narrados desde detalhes mais fáceis aos mais complexos da história, estes foram preservados através da tradição.Sem dúvida, temos muitos assuntos que não são fundamentais para a constituição da história e da fé cristã, mas mesmo assim esses assuntos (heresias) contribuem atualmente para que a igreja esteja alerta com o que tem sido lançado e possam fundamentados nos ensinamentos e legados deixados pelos primeiros cristãos juntamente com a Palavra de Deus, a Bíblia, estarem prontos a demonstrarem e fazerem uso contra o que está contraditória a fé.
José Roberto Silva Canário 2º ano - Ceforte
A tradição foi um instrumento utilizado para que o homem pudesse ter ao seu alcance as Escrituras, que lhe garantem uma fé baseada na verdade. Contudo,o texto nos revela que lacunas foram abertas por meio deste instrumento, como foi o caso do gnosticismo infiltrado no catolicismo romano, porém, sabiamente Irineu valeu-se da existência de um modo legítimo para interpretar os textos sagrados, que foi a tradição hermenêutica. Válido ressaltar que neste século a utilização daquela ferramenta é extremamente importante, pois desta forma a correta interpretação não abre brechas, ou pelo menos dificulta a infiltração de heresias e má interpretações!!
ResponderExcluirCAROLINA GUIZO
Nossa maior carência nestes tempos no meio chamado cristão, é de uma interpretação correta do texto bíblico. Haja vista quantas heresias e quantos movimentos em nome de Deus tem surgido em decorrência da distorção ou alienação das Escrituras. Como frizou muito bem o autor do texto acima, não podermos nos desvencilhar de dois mil anos de história de interpretação! O texto mostra a importância de recorrermos à tradição hermenêutica a fim de descobrirmos a verdadeira interpretação do texto apontado, com a convicção de que são realmente documentos fiéis e elaborados com a maxima circunspecção; e ainda, sobretudo, conservados pelo Deus Soberano para dar suporte à correta interpretação da Escritura divinamente inspirada.
ResponderExcluirDanilo Alves
Temos a bíblia como palavra de Deus absoluta, embora não descartamos lituras para adquirirmos conhecimento, entretanto não se fará este superior a bíblia, a hermenêutica é um instrumento para confirmar a autoridade bíblica para que não aja duplicidade em suas interpretações.
ResponderExcluirOs reformadores buscavam melhorias, porém sem desprezar os conceitos passados como trindade, temos por certo estes, pois do contrario não teria subsistido por tantos anos o cristianismo, para termos uma ideia contemporânea de algo, precisamos considerar as orientações passadas.
Temos que levar em consideração também os escritos estra bíblicos porque com eles também encontramos conhecimento, e a autenticidade bíblica, mesmo quando este é colocado em duvidas, os escritos mais antigos já são uma copia dos originais que não existem mais, cremos que Deus foi fiel ao cuidar de sua palavra, para que hoje pudéssemos ter acesso à sua revelação.
Márcia de Jesus 3º periodo