Reflexões sobre o púlpito brasileiro
28/05/2013 08:59:01
Este autor ensina Homilética há alguns anos no Instituto Bíblico de
Bauru, na Faculdade Teológica Batista de São Paulo, na de Brasília, onde
ainda lecionou Pregação Expositiva e Pregação Biográfica, e agora, na
Faculdade Batista de Teologia do Amazonas.1 Isto não o torna uma autoridade no assunto, mas lhe permite ter uma visão razoável do que se passa em nossos púlpitos.
Uma das tarefas pedidas aos seus alunos tem sido a de anotarem os
esboços dos sermões que ouvem em suas igrejas. Isto é muito revelador.
Boa parte dos alunos não consegue cumprir a tarefa por um motivo muito
simples: o sermão não é compreensível. Não conseguem ver suas divisões.
Isto seria remediável. A queixa maior é de absoluta falta de logicidade
na argumentação. O sermão não é linear, mas circular, com argumentos se
repetindo, sem se encaixarem, sem um nexo.
Preservando nomes e lugares expenderemos algumas considerações sobre o
púlpito brasileiro, à luz desta experiência vivida com os alunos. Nada
foi inventado e as opiniões são com base no que foi ouvido. A elas
acrescemos nossas opiniões.
Uma questão que salta aos olhos é a consciência messiânica de muitos
pregadores. É evidente que se espera de quem prega uma convicção muito
profunda do que está a dizer. Se um homem não está possuído por uma
santa paixão pelo evangelho, sua pregação será oca. Mas parece haver uma
megalomania acentuada em alguns púlpitos. Desde a frase dita por um
pregador (ouvida e anotada por um aluno): “Quem estende a mão contra
mim, morre!” até o elogio em boca própria, muito comum. Outro pregador
tornou-se célebre pelo repetido uso da expressão: “Um homem culto tem de
falar três idiomas. Eu falo quatro”. Isso se tornou risível.
Esta autoimagem muito elevada já começa com o estudante de homilética.
Muitos alunos recusam a disciplina e são imunes ao seu aprendizado
porque já sabem pregar, porque acreditam que têm uma linha direta com
Deus e que fazer reparos ao seu sermão é duvidar de sua integridade
espiritual. A ideia é que o sermão vem de Deus e não dos homens.
É incrível como esta concepção rege muitos pregadores e bloqueia os
alunos. Combatemos este conceito observando que, se o sermão fosse dado
por Deus, todos seriam iguais ou bastante semelhantes. Os pregadores não
evidenciaram tantas diferenças entre si. Basta olhar em redor e
verificar que há grandes diferenças em termos de conteúdo e de
espiritualidade entre os pregadores para se saber, como bem diz Pedro
Bloch, que “o homem é a fala”.
Al Martin nos diz que “o solo onde medra a pregação poderosa é a própria vida do pregador”.2
Estabelece ele um vínculo muito estreito entre pregação e pregador. O
sermão não é um pacote espiritual que Deus dá ao pregador, mas é uma
parte do pregador. No sermão descobrimos quem é o pregador: sua piedade,
sua cultura, sua cosmovisão. Mas essa “messianidade de púlpito” mostra
haver em muitos uma atitude de colocar-se acima da crítica e da
necessidade de aperfeiçoar-se, como se tudo já estivesse completado. O
narcisismo parece muito acentuado entre os pregadores.
Observamos também uma espantosa irrelevância, com a abordagem de temas
que não interessam ao povo. Um dos alunos registrou que seu pastor
utilizou três domingos pela manhã para dar relatórios da assembleia
anual de sua denominação, incluindo balancetes financeiros. O
malbaratamento do tempo e das oportunidades é surpreendente. Nota-se
aqui um contraste: embora os pregadores tenham uma autoimagem elevada,
não parecem ter um conceito elevado da pregação em si. Aquelas pessoas
que são o auditório estão colocando, cada uma, meia hora de suas vidas
nas mãos do pregador. Este tempo pode ser fundamental para o destino do
ouvinte. As queixas mais comuns têm sido a de falta de conteúdo na
pregação. O que se diz é irrelevante. Um sermão anotado foi sobre o
parto. Com base em Gênesis 3.16. (“com dor darás à luz filhos”) o
pregador se posicionou contra o parto sem dor. Outro pregou contra a
prática de esportes, baseando-se em 1Timóteo 4.8: “o exercício corporal
para pouco aproveita” (uma afirmação, por si só, bastante discutível e
não sustentável hoje). De 2Samuel 11.2: “E do terraço viu uma mulher que
estava se lavando” saiu um sermão contra a televisão, advertindo que
Davi viu o que não devia ver e que na televisão vemos o que não devemos.
A conclusão foi esta: “a televisão é uma agência de perdição”. Isto
aconteceu em grandes centros urbanos do Brasil! O que estas exegeses
revelam? Que benefícios trouxeram para a comunidade? O púlpito é para
questões como estas? Este uso da Bíblia é correto? É isso que a Bíblia
está ensinando?
A emissão de conceitos puramente pessoais em nome de Deus tem sido muito
notado. Principalmente em épocas de eleições, as exegeses pró e contra
posições políticas avultam. O uso da Bíblia é feito de maneira pouco
convencional, sendo nada adequado para justificar a postura da pessoa. É
oportuno lembrar uma citação do Prof. James Stewart: “A pregação não
existe para a propagação de ideias, opiniões e ideais, mas para a
proclamação dos poderosos atos de Deus”.3
Num agradável livrinho, Oswaldo Ramos4 nos traz ensinamentos
muito práticos sobre pregação, acompanhados de curiosos desenhos. Num
deles há duas senhoras conversando. Uma delas diz à outra: “Nosso pastor
é formidável. Consegue pregar um sermão em qualquer versículo!”. Com a
mão na boca, rindo, a outra diz; “O nosso é mais formidável ainda. Prega
o mesmo sermão usando qualquer versículo!”. O uso de formidável foi muito bem escolhido. O sentido original da palavra é “terrível”. É realmente terrível uma situação dessas.
A ausência de conteúdo bíblico, em muitos lugares, é suprida pelo grito.
“Isaltino, por que os pregadores brasileiros gritam?”, perguntou-me,
surpreendido, o colega argentino Daniel Carro, num congresso de que
participávamos. “Acho que é para mostrar que têm poder”, respondi.
“Poder de quê? De arrebentar os ouvidos?”, devolveu-me o colega.
Impressiona o nível sonoro dos sermões. Até mesmo quando transmitidos
pelo rádio. Parece a alguns que, se não falarem em nível elevadíssimo,
não serão acatados. Num excelente artigo, “Não Consigo Falar Mais
Baixo”,5 o Dr. Noélio Duarte, especialista em problemas da
fala, analisa as razões pelas quais as pessoas falam alto: insegurança,
autoritarismo, problema de audição, baixa educação etc. Pode haver
outras razões mais, até sadias. Mas uma coisa é certa: um pregador aos
gritos incomoda muito. E parece ser comum em nosso meio.
Um pouco à parte das anotações dos alunos, impressiona a pândega em
muitos sermões. Boa parte dos pregadores tem o hábito de começar com uma
piada “para quebrar o gelo”. Voltando a Al Martin:
Ninguém pode ser, ao mesmo tempo, um palhaço e um profeta... Isso não quer dizer que não devamos ser autenticamente humanos, e que a habilidade natural de rir envolva qualquer elemento de pecaminosidade, ou que fosse pecaminosa a alegria natural que se deriva de um riso que procede do fundo do coração. Entretanto, o esforço desnatural de certos pregadores para serem ‘contadores de piada’, entre a nossa gente, constitui uma tendência que precisa acabar. 6
Temos observado, na análise dos assuntos abordados pelos
sermões, que a maior preocupação é operacional e apologética: o modo
como a coisa funciona e um ataque-defesa contra outros grupos. Boa parte
dos sermões têm se ocupado em mostrar como o crente pode funcionalizar a
vida cristã. Ocupam-se da prática cristã — oração, testemunho,
comportamento no mundo etc.
Houve um ano em que 40 alunos não captaram, durante três meses, um só
sermão ético. Quando a abordagem é ética, é em termos de microética
(bebida, fumo, mau testemunho etc.). A macroética (assuntos como
cidadania, responsabilidades civis etc.) é menos abordada.
Parece que uma grande preocupação do púlpito é com a orientação em
questões menores, com o cotidiano, do que com grandes temas. Parece
refletir uma situação pastoral: são estas questões que mais frequentam
as entrevistas em gabinetes pastorais. Os pregadores reagem às questões
mais comuns.
Surpreende-nos a preguiça. Saindo da área das observações anotadas, é
impressionante que livros com esboços de sermões (geralmente
defeituosos, do ponto de vista homilético, com argumentação confusa e
dispersa) sejam bem vendidos. Nossa luta é para que tais publicações não
sejam compradas. Mas até aqui se nota o narcisismo. Uma destas obras,
com esboços pouco compreensíveis, trazia o pomposo título de Sermões de Poder. Realmente espantoso: esboços poderosos. A falta de familiaridade com as regras homiléticas
(ferramentas para ajudar o pregador e nunca substitutas da
espiritualidade) e a falta de disposição para o trabalho — a leitura
bíblica repetida, a exegese, a aplicabilidade das informações bíblicas, a
luta para ordenar as ideias — levam à procura destes livros, que um
pregador sério e esforçado para dar o melhor de si nunca deveria
utilizar. Da mesma forma os livros de ilustrações enlatadas! Como se
ouvem ilustrações absurdas, falsas e descontextualizadas, como de rei e
rainha, ou do que aconteceu em outros países. A melhor fonte de
ilustrações são os olhos atentos ao que se passa ao redor,
contextualizando o ensino bíblico ao cotidiano e analisando este à luz
da Bíblia. Isto enriquece significativamente um sermão: o mundo de ontem
(a Bíblia) e o mundo de hoje (o que o pregador viu) se ajuntam.
Sem colocar-nos acima de outros e sem denegrir colegas que têm realizado
grandes ministérios, uma análise do material que temos compulsado nos
permite uma diagnose um tanto genérica, mas não inventada do púlpito
brasileiro. Uma vitrine muito grande para exibição, escassa exegese
bíblica, uso fragmentário da Escritura6 e despreocupação com a
técnica. (Um aluno queixou-se de um pregador que há anos tem um
problema sério de dicção que leva o auditório a perder mais da metade de
suas palavras.) A preocupação maior do púlpito, enquanto voltado para
os crentes, é mostrar a funcionalidade da vida cristã. Um problema grave
é o desconhecimento de regras da língua portuguesa. Erros de
concordância, de sintaxe, incapacidade de articular as frases sem
maneirismos (é, né, tá, aí, ahn, intão)
mostram um desinteresse pela comunicação eficiente. O negócio é dar o
recado. Mas esta é a questão: o recado foi dado de forma eficiente?
Basta desincumbir-se da missão ou é preciso fazê-lo bem? Uma boa palavra
de Spurgeon, “o príncipe dos pregadores”, elucida a questão:
Vocês nunca ouviram falar por que Charles Dickens jamais se tornaria espírita? Numa sessão ele pediu para ver o espírito de Lindley Murray, o famoso gramático. Compareceu o pretenso espírito de Lindley Murray, e Dickens lhe perguntou: ‘Você é Lindley Murray?’ A resposta veio prontamente: ‘Sô ele mermo’. Não se poderia esperar a conversão de Dickens ao espiritismo depois de uma resposta que feria tanto a gramática. Podem rir, mas não deixem de fixar a moral da história. É fácil ver que, com erros de concordância, de regência verbal etc., poderão afastar a mente do ouvinte daquilo que tentam apresentar-lhe, impedindo assim que a verdade alcance seu coração e a sua consciência.8
Se a análise, mesmo sucinta, parece depreciativa,
registramos um ponto altamente positivo: a sinceridade espiritual. São
pessoas que parecem querer fazer o melhor. Não o fazem, muitas vezes,
por impossibilidade ou por não terem sido despertadas. Mas assim mesmo,
fica-nos a impressão de que o púlpito brasileiro é débil. Em forma e
conteúdo. Pode ser melhorado. O meu, inclusive.
Sobre cinco pontos indispensáveis ao sucesso da comunicação verbal alistados por Irving Lee9
apresentamos acréscimos que devem ser considerados pelo pregador. Com
isto, declaramos que a homilética precisa receber mais enfoque pelo
ângulo da comunicação. Eis os pontos:
1. Domine seu assunto. Saiba exatamente o que deve dizer. Assim você não
se perderá e evitará digressões ociosas e desnecessárias.
2. Aprenda a reconhecer os pontos fracos, os defeitos e as deficiências
da comunicação dos outros. Ou seja, desenvolva o senso crítico — analise
o que está errado.
3. Faça exatamente a mesma coisa com a sua comunicação. Você não é
melhor que eles e talvez cometa os mesmos equívocos. Mas se viu como são
prejudiciais, poderá eliminá-los na sua prática.
4. Desenvolva habilidades no sentido de aperfeiçoar a sua capacidade de
comunicação. Seja crítico consigo mesmo, grave seus sermões e os
analise, peça a uma pessoa de confiança que aponte falhas etc.
5. Procure aperfeiçoar sua capacidade de comunicação. Corrija seus
erros, estude seu idioma, elimine os maneirismos verbais e, se for o
caso, busque ajuda profissional.
A insatisfação consigo mesmo e a busca de uma melhora constante são
compatíveis com a dignidade da pregação. Um pregador sério nunca se
presumirá completo, mas estará sempre crescendo. Ser um bom pregador é
uma tarefa que leva a vida toda e mais seis meses.
_________________________________________________________
1Este texto foi publicado, originalmente em Vox Scripturae volume IV – número 1, Março de 1994, p. 3-8.
2Al Martin, O Que Há de Errado com a Pregação de Hoje? (São Paulo, Fiel) 7.
3Citado de John R. W. Stott, The Preacher’s Portrait: Some New Testament Word Studies (Grand Rapids: Eerdmans, 1961) 34.
4Oswaldo Ramos, Maneja Bem a Palavra da Verdade (sem dados) 26.
5Noélio Duarte, “Não Consigo Falar Mais Baixo”, O Jornal Batista (5 de dezembro de 1993).
6Martin, O Que Há de Errado com a Pregação de Hoje?, 23.
7Sobre esta forma de encarar a Bíblia, ver Martin-Achard, Como Ler o Antigo Testamento (São Paulo, ASTE, 1970).
8Charles H. Spurgeon, O Conquistador de Almas, trad. Odayr Olivetti (São Paulo: PES, 1978) 65.
9Em Penteado, A Técnica da Comunicação Humana (9ª ed., São Paulo: Pioneira, 1986) 16.
Fonte: http://www.teologiabrasileira.com.br/teologiadet.asp?codigo=329
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