Bíblia e Exegese
Jesus, “Legião” e a questão de “controle” exegético
03/06/2013 08:57:15
A desmitificação da ficção moderna que trata o teólogo profissional como
heroíco defensor de objetividade científica consta entre as
contribuições positivas da teoria pós-moderna aos estudos contemporâneos
das Sagradas Escrituras. Como N.T. Wright mostrou há vinte anos, muitos
métodos “críticos”, alegadamente “neutros”, “encapsulam posições
filosóficas inteiras, que em si, são altamente questionáveis” (Wright
1992: 54). Inevitavelmente, todo exegeta realiza a tarefa exegética a
partir de alguma agenda, seja ele
consciente, parcialmente consciente, ou inteiramente inconsciente disso. Ninguém é “neutro”.
Por outro lado, e, diga-se de passagem, mais um ponto em favor da teoria
pós-moderna, ninguém precisa ser neutro. Entretanto, a não ser que
lancemos mão de algum método radical do tipo reader response,
a exegese bíblica se preocupa em extrair do texto seu verdadeiro
sentido entendido em termos da intencionalidade autoral. Com esta
finalidade, aquilo que se espera do exegeta é que ele identifique,
conheça e examine sua própria agenda e — dentro do possível — questione
no âmbito metodológico se o texto controla a agenda ou se a agenda
controla o texto (daí a questão do “controle exegético”). Eisegese
suplanta exegese quando o intérprete perde de vista aquele duplo
preceito particularmente querido da teologia reformada, a saber, a autoridade da Escritura Sagrada e a submissão do cristão diante dela (cf. Throup 2009: 83-94).
Este ensaio procura ilustrar os perigos inerentes da exegese cegamente
controlada pela agenda do crítico. Tanto especialistas como pregadores
são capazes de incorrer neste erro, aqui me incluo nas duas categorias.
Reconheço, pois, que minha agenda é potencialmente capaz de ditar qual
seria a leitura natural do
texto, quando a leitura natural do texto deve informar e, caso
necessário, modificar ou corrigir a minha agenda. Portanto, aqui não se
trata de um exercício de caça-bruxas. Tampouco será torcer pelo retorno
daquela ilusória objetividade moderna. Está claro que as agendas não são necessariamente problemáticas em si: vira problema quando impõem sentido ao texto que faz pouco sentido, ou que ofusca o sentido mais provável do texto sagrado.
(i). Jesus e “Legião”: crítica literária a partir de Marcos 5.1-201
Após a tempestuosa travessia do mar (Mc 4.35-41), Jesus desembarca em
território gentio, deparando-se com a cena depravante e desesperadora de
um homem endemoninhado, indomável e autodestrutivo (Mc 5.1-5).
Lançando-se aos pés de Jesus, o homem anuncia, “Que é que tenho eu com
você — Jesus, filho do Deus Altíssimo? Imploro-lhe perante Deus, não me
torture!” (Mc 5.7 [trad. minha]). Em seguida, Jesus pergunta, “Qual o
seu nome?” e o homem lhe responde, “Legião
é meu nome, pois somos muitos” (Mc 5.9). O resto da história, com a
transferência dos demônios à manada de porcos, o destino aquático dos
mesmos e a instituição do primeiro missionário gentio, nos é conhecido.
Por enquanto, o enfoque aqui será Mc 5.9, crux interpretum para muitos intérpretes ao comentar este texto.
O termo que chama atenção é “Legião”, palavra que pode ser entendida prima facie como nome próprio, isto é, o apelido
dado ao sujeito em consequência da sua condição. Como alternativo,
seguindo a velha sugestão de Wellhausen, “Legião” poderia ser apreendida
como a reposta esperta e evasiva do bando de demônios que, falando
genericamente em números, visa manter em sigilo seus nomes reais (in Marcus 1999: 345). A palavra “Legião” é uma espécie de latinismo ou loanword oriundo do militarismo romano, embora não seja exatamente a transliteração grega do termo latino legio.
Como veremos adiante, a conotação romana da palavra se torna crucial
para as interpretações sugeridas por comentaristas como Myers (1988),
Marcus (1999), Horsley (2001), e Garroway (2009) em referência ao texto
na íntegra. Antes de abordar a leitura destes intérpretes, é preciso
considerar brevemente a questão que tange ao espectro semântico e as
possíveis ressonâncias que o termo “Legião” teria na palestina do
primeiro século.
Embora, a exemplo de Donahue e Harrington (2002: 166), haja quem
sustente a ideia de que “Legião” seria o simples sinônimo de “muitos”
(assim como a palavra “legion” no inglês hodierno), na antiguidade este
uso parece ter sido incomum. Garroway (2009: 61) dá outra explicação,
comparando o uso do termo “Legião” à situação atual em que a palavra
inglesa “marines” (fuzileiros navais) inevitavelmente passa a imagem do
invasor estrangeiro em um país como o Iraque. No primeiro século,
obrigatoriamente, a palavra “Legião” conotaria a presença militar do
império romano. A legião romana correspondeu à unidade de 6 mil homens, e
visto que o historiador Josefo atesta a presença delas na palestina — e
da Décima Legião no Decápolis (Guerra 3.233; 289) — a retórica de
Garroway é irresistível neste ponto.
Resumindo, no contexto mediterrâneo do século primeiro, é inevitável que
o termo “Legião” traria em si a nuance romana militar. A grande questão
que passa da exegese para a hermenêutica, concerne ao sentido
em que o termo é empregado em Mc 5.9, e as implicações do signficado
dele no âmago mais amplo. Como veremos, para certos comentaristas a
menção de “Legião” em Mc 5.9 converte-se no pivô exegético da história
na íntegra — e até do evangelho inteiro! Mas, Marcos teria uma agenda anti-império, ou tal anti-imperialismo seria mais o reflexo da perspectiva dos críticos atuais?
(ii). Jesus e “Legião”, agendas e a falta de “controle” exegético
No comentário de Myers (1988),2 a menção de “Legião” em Mc
5.9 possibilita a interpretação de todo o episódio relatado em Mc 5.1-20
em termos do anti-imperialismo idealizado por um reformador
sóciopolitico (Jesus de Nazaré). Na interpretação socioliterária de
Myers (1988: 193), o exorcismo é apreendido como “ação simbólica
pública”, ademais, “o endemoninhado representa a ansiedade coletiva
quanto ao imperialismo romano”. Na tentativa de basear esta conclusão
psicanalítica no contexto marcano, Myers (1988: 194) faz referência à
parábola do grão de mostarda (Mc 4.30-32): “Marcos acaba de prometer que
a semente de mostarda superará a “grande árvore” de Roma”. Myers (1988:
192) argumenta que como um exército invasor, os demônios “não querem
sair da região” (Mc 5.10).
A dificuldade aqui consiste na manobra de Myers que imputa ao texto
bíblico aquilo que não transparece nele, assim moldando o significado
textual a serviço da sua agenda anti-estabelecimento. Primeiramente,
Jesus jamais afirma que a semente de mostarda “superará a ‘grande
árvore’ de Roma”. Interpretar a parábola desta forma é atar a dimensão
escatológica à época romana, particularizando aquilo que é de cunho
geral, uma vez que “a árvore do Reino” é a maior “de todas” (Mc 4.32). É
fato que antes de Mc 5.9 e o latinismo “Legião”, não há nenhuma
referência explícita ao império romano. Portanto, Myers extrapola aquilo
que precisa demonstrar do texto, importando-o para a discussão de Mc
5.1-20 sem justificativa. Em segundo lugar, a leitura natural de Mc 5.10
mostra Jesus lidando com demônios, e não com soldados. Procurar algum significado alegórico e(ou) psicológico aqui é desnecessário: como espíritos impuros (Mc 5.2, 13), é natural que os demônios não
queriam sair da ritualmente impura região dos túmulos. Nada necessita,
pois, a inferência de que nas entrelinhas de Mc 5.10 romanos estão no
lugar de demônios, ou que, digamos, os verdadeiros demônios são os
romanos. A agenda de Myers parece controlar sua leitura do texto,
quando, de repente, a leitura do texto deveria exercer mais controle
sobre sua agenda.
Entre comentaristas que têm seguido a linha de Myers é o renomado
especialista no Evangelho de Marcos, Joel Marcus (1999). Marcus combina
elementos da leitura de Myers com a análise semântica de Derrett (1979) e
entende que o vocabulário alegadamente militar de Mc 5.1-20 aponta —
pelo menos do ponto de vista da pré-história da narrativa marcana — para
uma crítica anti-imperial. Porém, Marcus absorve a análise de Derrett
de forma acrítica, pois os termos gregos citados nesta conexão (ex. pempein [enviar], epitrepein [permitir; mandar], hōrman
[precipitar-se]) não contêm nenhuma “nuance militar” particular (Marcus
1999: 352) como confirmam as respectivas entradas de BDAG. Levanta-se,
pois, a suspeita de que a agenda subjacente esteja controlando o
significado do texto que está nas mãos do crítico.
Igualmente, Gundry (2000: 390) ataca o raciocínio um tanto quanto
estranho de Marcus (1999: 345) de que o desejo dos demônios de entrar nos porcos
trata-se de insinuação sexual, relembrando atos de estupro perpetrados
por exércitos invasores! Para Marcus (1999: 345), uma alusão ao estupro
prossegue porque a palavra “porco” pode simbolizar a genitalia feminina.
Porém, Marcus cita apenas uma instância em que este seria o caso, e
isto em Aristofanes, satirista grego do século V a.C! Percebemos a falta
de algum preceito mais rigoroso de “controle” exegético que rega
interpretações mais especulativas. Este “controle” incluiria a exigência
de prover paradigmas ou exemplos textuais a fim de comprovar que a
linguagem e a fraseologia utilizada pode ser empregada da forma sugerida pelo crítico. Além de comprovar que a interpretação oferecida é hipoteticamente possível, o exegeta necessita argumentar à base das evidências a fim de demonstrar a inerente probabilidade da sua leitura, visando, especialmente, considerações contextuais.
De todos aqueles influenciados por Myer, Horsley (2001) é quem realmente
permite que a agenda anti-império oriente toda sua leitura do texto.
Horsley tem uma agenda transparente: denunciar a “nova desordem mundial” do imperialismo norte-americano. A tese dele é fascinante, especialmente no que se refere às comparações e alegadas correspondências entre a pax romana e a “pax americana”.
Todavia, agenda é uma coisa, texto é outra. Enquanto determinados
aspectos da tese da “nova desordem mundial” podem ser legítimos ou
parcialmente legítimos por uma série de razões, imputar sentido duvidoso
às palavras do autor sagrado para legitimizar seu ideal político é ilegítimo e inválido como modus operandi exegético.
Horsley (2001: 102), parece incorrer no erro descrito acima ao afirmar
categoricamente que os seguidores de Jesus, “entenderam que o
significado último dos exorcismos de Jesus era a derrota do governo
romano”. Para Horsley, a morte por afogamento dos porcos em Mc 5.13
relembra Ex 14.28-30 e a morte do exército egípcio (cf. Marcus 1999:
348-349). Este paralelo em conexão com a referência a “Legião”,
supostamente confirma que as forças satânicas em “Marcos”, representam, na realidade,
as forças do império romano. Mas, será que o alegado paralelo é capaz
de suster o peso interpretativo que Horsley quer colocar nele?
O paralelo citado por Horsley está incerto pois não há correpondência
exata entre o grego de Mc 5.13 e a LXX de Êx 14.28-30. Mesmo se o relato
marcano pretende aludir à narrativa do Êxodo, tal alusão não necessita
da conclusão alegorizante de Horsley que substitui romanos no lugar de
egípcios. Além do mais, a tentativa de ler todos os exorcismos desta
forma não convence: nenhum dos
outros exorcismos contém qualquer sinal de uma agenda anti-romana. Mais
adiante na seção (iii), examinaremos o contexto mais amplo de “Marcos”,
para determinar se Mc 5.1-20 possui este “significado último” que
Horsley detecta nele.
Aqui, para fechar esta lista representativa de intérpretes cujas agendas
tendem a colorir o texto sagrado indevidamente, nos deparamos com
Joshua Garroway. Garroway (2009) mostra-se mais sensível do que outros
em relação às dificuldades com a interpretação anti-imperial. Por
exemplo, Garroway (2009: 66) reconhece que termos gregos citados como evidências
de atividade militar não podem ser legitimamente utilizados nesse
sentido (veja acima). Por outro lado, a complexa reconstrução sugerida
por Garroway — componente central da qual é a ênfase anti-imperial —
carece de factualidade e evidência textual.
Garroway (2009) afirma que Mc 5.1-20 contém uma mensagem anti-imperial e
que o exorcismo de “Legião” precisa ser interpretado à luz das
parábolas em Marcos 4, especialmente — pegando carona em Myers — a
parábola do grão de mostarda. Porém, não existe nenhuma referência
explicitamente anti-romana nestas parábolas, e enquanto seria viável ler
Mc 5.1-20 em paralelo ao episódio anterior (Mc 4.35-41), (ex. Watts
1997: 162), não há paralelos verbais ou conceituais vinculando Mc 4.1-34
com Mc 5.1-20. Em última análise, a noção (Garroway, 2009: 73) de que
no desfecho da história, a atividade missionária de “Legião” (Mc
5.19-20) é comparável à “semente”, uma “invasão pacífica” como ato de mimesis subvertendo “ideologias padronizadas de reinado e invasão” soa como ficção erudita.
(iii). Jesus e “Legião”, linguagem anti-romana?
Na visão dos especialistas citados até este ponto, na narrativa marcana a
menção do termo “Legião” acarreta claro sentido e sentimento
anti-romano. Este tipo de linguagem, afirmam, configura e confirma uma
agenda anti-imperialista no Evangelho de Marcos. Ora, se houvesse evidências
consistentes e concretas da presença de tal agenda ao decorrer de
“Marcos”, esta conclusão faria sentido e seria potencialmente
convincente. Porém, uma análise mais ampla do evangelho não produz
muitas evidências nesse sentido.
Por um lado, é verdade que os romanos aparecem como inimigos de Jesus no
penúltimo capítulo do evangelho. Pilatos tem o poder de libertar um
homem cuja inocência está patente aos seus olhos, mas, incitado pela
multidão, acaba agindo de forma covarde e egoísta, sendo culpado, em
parte, pela morte de Jesus (Mc 15.14-15). Igualmente, os romanos
executam Jesus, tratando-o de maneira extremamente cruel (Mc 15.16-27).
Portanto, Marcos não nega o fato dos romanos se levantarem contra Jesus,
nem os exoneram da sua parcela de culpa na morte de Jesus.
Todavia, este retrato por si só não é sinônimo de uma agenda
anti-romana. É importante frisar que em “Marcos” a morte de Jesus não
ocorre somente por causa da injustiça dos senhores do império. Na
verdade, como relatada por Marcos, a crucificação de Jesus é o resultado
de um conjunto de fatores envolvendo diversos personagens humanos, em
conformidade (em última análise) com os desígnios do próprio Deus.3
Se Pilatos o romano é culpado, Judas o judeu também é. Se os soldados
romanos foram responsáveis pela execução de Jesus (Mc 15.21-27), a
multidão (Mc 15.8-13) também foi. Além do mais, Marcos enfatiza bastante
a participação das autoridades religiosas judaicas
de Jerusalém como protagonistas no complô para acabar com Jesus (e.g.
Mc 10.33; 14.53-64; 15.1, 14). Ao longo do evangelho, a oposição e
resistência consistente e constante não é romana, antes, é aquela dos
próprios judeus (e.g. Mc 2.7; 3.22-27; 6.1-6; 7.1-5; 10.2; 10.33; 11.18;
11.27ss; 12.13; 14.53-64; 15.1, 14). Enfim, a responsabilidade pela
morte de Jesus é partilhada, e, estritamente falando, os romanos
aparecem somente no último momento como “executores”, (v. especialmente
nesta conexão Mc 10.33 e a expressão “as nações”).
Mesmo compreendido desta maneira, existe um fator mitigante. No próprio
cenário da crucificação, o evangelista conclui a cena da morte de Jesus
com a afirmação do centurião: “Verdadeiramente, este é o (ou um) Filho
de Deus” (Mc 15.39). Independente de quaisquer considerações históricas,
na ótica da narrativa marcana esta afirmação é nada menos do que uma
profissão de fé em Cristo.4 O centurião é retratado, pois, de
maneira positiva, tornando-se em um modelo positivo para os gentios.
Esta noção sobremaneira positiva de conversão
não condiz com a suposta agenda marcana anti-romana. Talvez
simbolicamente o evangelista esteja sugerindo que o império se
converterá a Cristo. Neste caso, porém, a agenda não seria
explicitamente anti-romana, poderia ser visto, até, como pró-romana.
A hipótese da agenda anti-romana cai por terra quando se depara com o
fato de que o único indivíduo romano mencionado pelo nome em “Marcos” é
“Pilatos” (sem menção do nome próprio “Pôncio”) e que, coincidentemente,
Mc 15.1 constitui a primeira menção de qualquer cidadão romano
no evangelho inteiro. Isto é, antes do capítulo 15 — com a provável
exceção da palavra “Legião” em Mc 5.9 — não há nenhuma referência
explícita sequer ao império romano no Evangelho de Marcos.5 A alegada agenda anti-romana simplesmente não se encontra no texto de “Marcos”.
Retornando pois ao caso de estudo apresentado neste ensaio, como, então,
poderíamos entender a referência a “Legião” em Mc 5.9, uma vez que este
termo carregaria em si — quase inevitavelmente — conotações do exército
imperial de Roma? Primeiramente, é importante averiguar o que, de fato, Mc 5.9 diz. Logo, vemos que a palavra ὅτι é causal, ou seja, o nome “Legião” indica, na leitura natural do texto, o grande número de demônios que possuiram o infeliz gentio: “Meu nome é Legião, pois somos muitos”.
A comparação ao exército romano está relacionada, em primeiro lugar, ao
número elevado de demônios que dominavam o homem. Outras implicações
podem ser relevantes, mas, em primeiro lugar, gramaticalmente a
comparação tem este sentido numérico.
Se a agenda marcana fosse preponderante e militantemente anti-romana —
se a mera menção do termo “Legião” visa levantar uma bandeira e toda uma
causa anti-romana — por que incluir a cláusula iniciada pela palavra
grega ὅτι? Como o jornalista que procura representar a postura política
da sua emissora, se a agenda política de Marcos fosse anti-romana, seria
mais coerente relatar apenas a primeira parte da fala do demônio, “Meu
nome é Legião” omitindo a explicação “pois somos muitos”. Da perspectiva da narrativa, a cláusula explicativa surte o efeito de suavizar o pronunciamento de Legião, à medida que a comparação enfatiza a dimensão numérica. Historicamente, isto pode ter sido importante para o evangelista.6
Em linhas gerais, portanto, entendo que Mc 5.1-20 está relacionado principalmente à batalha que Jesus trava contra Satanás.
Desde o primeiro capítulo do evangelho (Mc 1.13, 1.24), e ao decorrer
do mesmo (e.g. Mc 1.23-28; 1.39; 3.11-12; 5.1-20; 6.13; 7.24-30;
9.14-29), a palavra paulina “não é contra pessoas de carne e sangue que
temos de lutar, mas sim contra principados e poderios” (Ef 6.12) poderia
descrever a atitude do próprio Jesus. A explanação sociopolítica do
termo “Legião” é fascinante, mas tende a projetar ao texto mecanismos
contemporâneos com o efeito de afastar o leitor da Sitz im Leben do primeiro século d.C., um tempo — é bom relembrar — em que Satanás era Satanás e demônios eram demônios.
É verdade que em determinados momentos a ação satânica converge com a
ação humana, incitando a mesma. Basta recordar-se da declaração de Lucas
a respeito daquele que traiu Jesus: “Satanás entrou em Judas” (Lc
22.3). Nas entrelinhas de “Marcos”, também existe indicações do
intercâmbio e parceria de Satanás com os inimigos humanos de Jesus
(tópico, de repente, para um outro artigo). Isto, porém, não seria
evidência de uma ênfase anti-romana, especialmente porque tal associação
diz respeito mais aos judeus (alguns dos quais eram anti-imperialistas), do que aos romanos. Em Marcos, simplesmente não existe o anti-imperialismo de uma agenda anti-romana que alguns imaginam.
(iv). Considerações finais
Nas interpretações analisadas acima, o intuito tem sido apontar para a
falta de “controle” exegético que mesmo na obra de especialistas
renomados tende a aparecer. Muitas vezes, há uma ausência de cuidados
metodológicos, o que significa que agendas subjetivas acabam
reconstruindo o sentido do texto de forma nitidamente duvidosa ou no
mínimo questionável. No estudo de caso apresentado acima, vimos como
intérpretes cuja agenda política é predominantemente esquerdista imputam
ao texto algo das suas preocupações latentes. Evidentemente,
interprétes caracterizados por outras agendas e convicções políticas são
capazes de agir de maneira semelhante, aliás, qualquer intérprete
tenderá a prosseguir desta forma, a não ser que haja o cuidadoso exame
dos próprios pressupostos à luz do texto sagrado.
Todos chegam ao texto com alguma agenda — inclusive eu e você — mas toda
agenda precisa ser avaliada eexaminada a partir do texto, submetendo-se
ao mesmo. O texto sagrado tem de informar a nossa agenda. Caso
contrário, correremos o risco de construir uma legião de conceitos
ilusórios, lindos castelos no céu azul do nosso imaginário.
REFERÊNCIAS:
DANKER, F. W. (2000) A Greek-English Lexicon of the New Testament and other Early Christian Literature: Third edition (BGAD). Chicago: The University of Chicago Press.
DERRETT, J. D. M. (1979) ‘Spirit Possession and the Gerasene Demoniac’, Man 14: 286-293.
DONAHUE J. R; HARRINGTON, D. J. (2002) The Gospel of Mark. Collegeville, MN: Liturgical Press.
GARROWAY, J. (2009) ‘The invasion of a mustard seed: A reading of Mark 5.1-20’ JSNT 32/1: 57-75.
GUNDRY, R. H. (2000) ‘Review of Joel Marcus’ Mark 1-8 A new translation with introduction and commentary. AB 27, New York: Doubleday, 1999.’ RBL: 386-391.
HORSLEY, R. (2001) Hearing the Whole Story: the politics of plot in Mark’s Gospel. Louisville: Westminster John Knox.
MARCUS, J. (1999) Mark 1-8. London: The Anchor Yale Bible, Doubleday & Co.
MYERS, C. (1988) Binding the strongman: a political reading of Mark’s story of Jesus. Maryknoll: Orbis.
THROUP, M. O. (2009) O Valor Inestimável da Pregação. São Paulo: Candeia.
WATTS, R. E. (1997) The influence of the Isaianic New Exodus on the Gospel of Mark. Tübingen: J. C. B. Mohr (Paul Siebeck).
WRIGHT, N. T. (1992) The New Testament and the People of God. London: SPCK.
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1Esta discussão opera com o texto na sua “forma final”, visto
que as interpretações dos comentaristas citados tendem a operar neste
nível. Por isso, a investigação visa esclarecer a interpretação marcana
dos eventos e não aborda (exceto onde for relevante para a
argumentação) a questão da inerente historicidade do relatório do
evangelista. Da minha parte, não vejo necessidade em duvidar da
essencial historicidade dos eventos relatados, embora eu compreenda que
esta postura está relacionada à minha própria agenda, e deve ser
examinada à luz das evidências e argumentos pertinentes — mas, historicidade não está em jogo aqui.
2O endosso exagerado de Walter Wink referente ao comentário
do Evangelho de Marcos de Myers descreve-o como “o mais importante
comentário sobre um livro da Escritura desde ‘Romanos’ de Barth”, não é
bem assim, mas a influência de Myers é considerável.
3Além de outros fatores, as predições de Jesus sobre sua morte (especialmente, Mc 8.31 dei “é necessário”) bem como o solilóquio em Getsêmani (Mc 14.36), mostram que a cruz é um evento divinamente ordenado.
4Há um debate quanto ao significado histórico do
pronunciamento do centurião: dependendo da intonação da voz, a
declaração poderia ser irônica, ou seja, mais um ato de zombaria
alvejando Jesus, igualmente, poderia ser uma confissão ou profissão de
fé sincera, o que certamente é no nível da narrativa.
5Implicitamente, o império romano está em mente em textos
como Mc 10.33,42 onde se fala em “nações” ou “gentios”, mas estas
descrições marcanas são mais genéricas.
6Isto é, se, segundo a visão tradicional, Marcos foi escrito
para uma audiência romana, seria nos interesses do autor evitar ofender a
plateia de maneira desnecessária. A comparação declaradamente numérica tende a reduzir o impacto negativo da identificação provável do bando de demônios com o exército romano.
Fonte: http://www.teologiabrasileira.com.br/teologiadet.asp?codigo=331
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